Sou ultra maratonista! (1ª parte)
Por Filipe Gil:
Antes de começarem a ler peço-vos que façam um pequeno exercício. Ponham a vossa mão direita em cima do joelho direito. Deixei-na cair levemente para a direita e aí vão sentir uns ossos e ligamentos que se mexem sobretudo quando esticam e encolhem a perna. Certo?
Agora vão buscar uma chave de fendas e…pronto, ok, não é preciso ir buscar a chave de fendas, imaginem só o que é uma chave de fendas a pressionar essa região a cada passada que davam a descer e, passados uns quilómetros, também a subir. E mais uns tantos já a direito e somente a andar. Foi esse tipo de dor que me acompanhou durante 46 quilómetros dos 53 do Ultra Trail. do Piódão. Agora sim, estão prontos para começar a ler a crónica:
Acordei bem. Ansioso, sem saber muito bem o que me esperava. Mas finalmente chegara o dia, depois de tantas semanas de treino, que foram abaladas no último par por uma lesão no joelho direito. Pensei nos meus e nas horas que lhe roubei para poder treinar.
Fiz a minha escolha do kit que decidi levar e fiquei uns 2 minutos a olhar para os bastões. “Levo, não levo?”, pensei. Estava calor, meti um corta-vento na mochila - de onde nunca saiu - e senti-me bem com um dos trails mais minimalistas que já fiz, a nível de equipamento: Meias curtas, calções leves, tshirt levíssima da Puma, boné, buff (que do pescoço passou para o pulso no final da prova) a mochila com alimentação e líquidos e nada mais. Ah, claro, e os Puma Faas 500 TR v2 nos pés. Olhei para o espelho orgulhoso de ter abandonado muita coisa (calções de compressão, meias do mesmo, etc, etc) entre o primeiro trail longo (Louzan - 33Km em Junho de 2014) e este Ultra do Piódão.
E por isso decidi deixar os bastões no hotel. Seguimos mais ou menos todos para a partida. Uns para os 25km e os outros, onde eu estava, nos 50km. A partida foi rápida. Sentia-me bem, a correr em fila indiana enquanto passávamos pela aldeia do Piódão. Até ao primeiro abastecimento a coisa foi muito engraçada, com piadas em jeito de aquecimento. Bebi um pouco de água e segui em conjunto com o resto do pessoal: Nuno Malcata, Nuno Espadinha, Tiago Portugal, Nuno Alves, Rui Pinto e Telmo. A Bo Irik e a Rute Fernandes ficaram um pouco para trás no seu ritmo. O João Gonçalves já tinha voado lá para a frente (terminou em 18º da geral).
Confesso que não gostei muito das bocas que alguns dos corredores mais velozes dos 25Km que entretanto partiram 15 minutos depois de nós (dos 50K) nos mandavam à passagem. Acho que a organização aqui pecou, devia ter dado mais tempo de intervalo entre ambas as distâncias. Encontraram-nos em locais muito estreitos onde era muito difícil de nos ultrapassarem. Fizemos os possíveis e impossíveis. Vi gente quase a cair de escadas para os mais velozes continuarem no seu ritmo.
A meio da primeira grande subida, o Pedro Luís apanhou-nos, ele que está a preparar o MIUT 2015, conversamos um pouco e ele seguiu no seu ritmo para os 25K. Os meus companheiros e amigos de jornada (e não faz aqui qualquer sentido distinguir quem é da crew ou de fora da crew, nesta jornada estávamos todos no mesmo barco) perguntavam-me aqui e ali como estava o joelho, respondia que bem, sem grandes certezas, isto porque começava a sentir uma pressão. Nessa altura, percebi que o Tiago Portugal queria puxar por mim e acompanhar-me durante a prova. Fiquei contente. Preocupado em atrasá-lo, mas contente.
A enorme subida terminou - aquilo demorou quase 1 hora a fazer, chegamos ao cimo e começamos a descer. E aí, ao quilómetro 8/9, o meu joelho começa a doer. Muito. Impossível correr. Os meus companheiros de aventura vão-se embora e eu fico para trás a andar. A tentar correr e a tentar forçar o joelho. Doía muito, mas doía muito mais o facto de pensar em abandonar a prova. Será que tinha tempo de chegar dentro do limite temporal da organização ao próximo abastecimento? Tanto esforço, tanto treino, tantas horas roubadas ao sono, tantos quilómetros feitos, tantas linhas escritas nas crónicas de preparação para desistir? A frustração tomou conta de mim. Confesso que os meus olhos encheram-se de lágrimas de raiva. Queria continuar, mas não conseguia. Senti-me frustrado e envergonhado. Pensava nas perguntas dos meus filhos sobre a prova com respostas de falhanço do meu lado.
Isto tudo enquanto continuava a tentar correr e a colocar o peso das passadas no joelho bom. Às tantas vejo o António e a Maria parados. A Maria tinha-se aleijado umas semanas antes e não aguentou. Estavam a tentar ultrapassar o momento, tal como eu fazia. Ela ainda disse: “segue que o resto do pessoal está ali mesmo à frente”. “Será?”, pensei. “Será que a andar como estou ainda consigo passar o próximo abastecimento dentro do tempo limite?”. Houve ali qualquer coisa que funcionou. Isso e o facto do chão começar a ficar com menos declive e eu ainda conseguia correr. Lá segui e quando passamos um passadiço de betão, ainda me pus com pressa a pedir licença para me deixarem passar.
Chegado ao abastecimento, o segundo, encontro o Tiago Portugal e o Nuno Malcata à minha espera. Fiquei atónito, “o que fazem aqui, vão se embora”, disse. Eu cheio de pressa para não ficar no abastecimento, todo stressado e eles ali à minha espera. Estava mesmo sem noção dos tempos que tinha que fazer para não ser eliminado, deixei o papel com as minhas notas no quarto do hotel - é o que dá tentar ser minimalista.
A subida seguinte, dividida em duas partes, foi brutal. Sem grandes dores a subir continuei devagar. Embora no abastecimento tenha tirado água, batatas fritas e laranja, comi um pouco das barras energéticas da Clif Bar (marca que não há no mercado nacional) para ganhar energia nestas subidas. Aqui o Nuno Malcata meteu o automático e nunca mais o vi. Minto, mais à frente, noutro abastecimento de soslaio. O Tiago sempre comigo, ele percebeu que estava com dores mas que não queria parar. E continuamos a subir, a andar e a tentar correr, e a subir. Chegamos ao topo, olhamos em redor, ao longe vimos um pouco de neve na Serra da Estrela. Vimos nuvens por baixo de nós. Inóspito, mas lindo a 1300 metros de altitude. Mas, claro, depois da subida….a descida e o regresso da dor.
Que começou por “estradões” onde tentei adaptar a passada para não me doer tanto. A “filha da mãe” da dor continuava cá e bem presente Mas quando o terreno aplanava, conseguia correr livremente. Depois veio uma descida em pedra solta, cascalho grande e muito inclinada e sofri muito, muito mesmo. Não consegui ir muito depressa, cada passo era dor. Mais lágrimas nos olhos, de dor, de raiva, de frustração.
Terminado o suplício lá fomos ter ao próximo abastecimento, cerca dos 25km. Parecia que o pior tinha passado - puro engano. Mas nesse abastecimento encontrei a maioria dos companheiros, com excepção do João Gonçalves que não corria, voava. Falámos um pouco. Uns metro antes encontramos o sempre bem disposto Eduardo Pinto com a sua longa barba esvoaçante.
Corremos soltos até ao abastecimento juntos cheguei sôfrego. Porque vi os amigos a descansar porque queria enviar um sms e falar com a minha mulher, a dizer que estava bem, porque queria tirar uma selfie para o resto da família saber que ainda estava vivo e, ao mesmo tempo queria beber uma “litrada” de coca-cola, comer batatas fritas e alguns frutos secos. Mas este abastecimento foi um erro. Foi muito stressante. Quis acudir a várias coisas ao mesmo tempo, devia ter descansado e não o fiz. Parecia aqueles dias de trabalho quando regressamos de férias, sem tempo para respirar, ou quando vamos ao estrangeiro e queremos ver todas os locais importantes de uma metrópole em dia e meio.
Entretanto eles seguiram o seu caminho, cerca de 3 minutos depois segui com o Tiago. Estava animado, apesar das dores e de não conseguir correr quando descia, conseguia fazê-lo a direito e a subir. E já estava a metade do caminho. Renasci nesta altura, mal sabia eu que o pior estava para vir, mas amanhã conto-vos o resto.