Sierra Nevada: Brutal, simplesmente espectacular!!! (2ª parte)
Por Tiago Portugal:
...Começou então a minha travessia no deserto. A partir daqui e até ao km 55 não sei o que me aconteceu mas fui completamente abaixo, fisicamente e depois mentalmente. As subidas tornaram-se quase inultrapassáveis, colocar um pé à frente do outro tornou-se uma tarefa esgotante, comecei a ficar para trás e a ser ultrapassado por muitos participantes. A única explicação lógica que tenho é que comecei nesta altura a utilizar os bastões, nunca os tinha usado.
Ao esforço das pernas adicionei os braços, como se estivesse numa elíptica, o que fez disparar o meu ritmo cardíaco e levou-me quase além dos meus limites físicos. Pela 1ª e última vez pensei em voltar atrás e desistir, pensamentos que me assombraram quase 1hora. Correr? Para que? Qual o objetivo disto tudo? Não estava melhor em casa? Quando regressar não vou meter-me em mais nenhuma? Em determinada altura pensamos todos o mesmo.
Parei. Sentei-me numa pedra durante 10minutos. Estava tão longe de casa. Cansado. Completamente desanimado. Revivi todo o esforço investido para estar ali naquele momento. Telefonei para a família, a tentar ouvir algumas palavras de conforto, li as muitas mensagens de incentivo, o meu obrigado a todos os que me mandaram mensagens. Relaxadamente comi e bebi enquanto observava a paisagem.
De repente tive uma epifania: Se tantos conseguem eu também vou conseguir. Basta acreditar. Dores? Todos tem, do 1º ao último. Mais do que a paixão por correr a essência desta prova era superar-me e ultrapassar as dificuldades que sabia iria encontrar. Afinal isto é uma prova de resistência física e psicológica.
Levantei-me com um ânimo redobrado e comecei a caminhar. Deixei os bastões de lado e lentamente fui recuperando as forças. Por volta do km 58 comecei a cantar e a sorrir, estava com a moral em alta e recomecei a correr sem paragens. Apanhei os meus companheiros de viagem que tinha deixado por volta do km50 e prossegui com eles até ao km 75, Hoya de la Mora.
Ao km 73, em Pradollano, estava instalada a meta. Quem quisesse podia encurtar caminho e terminar a prova já ali, foram mais de 50 os participantes da ultra tomaram essa decisão. Apesar de essa ideia não me ter aflorado os pensamentos acho que fazer o percurso passar mesmo ao lado da meta não é o ideal. Com a meta debaixo de olho seguimos em frente. Tínhamos pela frente 1 km vertical ao longo de sensivelmente 6km, tudo acima dos 2.000m de altitude.
Estava tão cansado que já não falava, ninguém dizia nada nesta altura. Fui em piloto automático durante quase 2 horas, não me lembro do que pensei, nem sei se o fiz. Erámos 3 almas desoladas neste fim de mundo em peregrinação rumo ao Pico Veleta. Nesta fase o importante era não parar custe o que custar. Chegados a Hoya de La Mora vi um café e fui a correr comprar uma coca-cola. Bebi-a avidamente. Desejos de um corpo cansado que inconscientemente sabe o que vai fazer bem e dá ordens diretas ao cérebro, a razão não foi sequer ouvida nesta decisão.
Comecei a ver o Pico Veleta cada vez mais perto e ao fim de 2 horas avistei uma senhora de casaco vermelho, coincidência, perto de uma casa, fiquei tão contente. Antes da subida final olhei para o relógio que marcava os 3.000m de altitude. Últimos minutos de esforço e alcancei-a. Disse-me em espanhol que já não havia mais subidas, agora era sempre a descer. Não consigo descrever o que senti. Fiquei eufórico. A meta estava a 7-8km de distância. Todo o esforço tinha compensado. Pela 1ª vez senti que já nada me impediria de terminar a prova, nem que seja a rebolar vou cortar a meta.
Fiz os últimos km’s o mais rápido que consegui. Com o cansaço a noção de velocidade fica alterada. Pensei que estava a correr a uma velocidade de 5m/km e quando olhei para o relógio tal surpresa, não ia mais rápido que 6m30/km. Demorei 1h05 a fazer os últimos quilómetros. A chegar, novamente, a Pradollano todos os presentes a baterem palmas, o incentivo de todos, a chegar à meta vejo alguém a dar-me a bandeira de Portugal, sei hoje que era o Bruno Bondoso, vencedor dos 100km do Oh Meu Deus em 2014 que ficou num extraordinário 9º lugar. Obrigado Bruno, passar a meta a segurar a bandeira nacional é uma sensação extraordinária. Orgulho em mim, em nós que viemos de tão longe movidos pela paixão que nos une ao trail.
16h29minutos, desnível positivo de 4987metros e um 72º lugar, o que menos interessava.
Saí de Serra Nevada com uma certeza e duas dúvidas.
A certeza que sou hoje uma pessoa diferente, sei que com dedicação, vontade, resiliência e querer podemos atingir quase todos os desafios a que nos propomos. Se outros conseguem nós também vamos conseguir.
Depois da prova fiquei a pensar, ainda hoje reflito muito sobre isto, em duas questões:
- Estarei ou já estou a ficar viciado na corrida e especialmente em provas longas de trail? E será na corrida ou na sensação de superação e de desafiar-me a ir sempre mais além e mais rápido?
- A resistência durante uma prova longa demonstra a nossa resistência na vida? A forma como abordámos a corrida e o trail reflete em parte a nossa personalidade e como encarámos a vida? Cada vez acho mais que sim.
Quero agradecer todo o apoio à Adidas, pela oferta de material, ao José Carlos Santos por toda a paciência e pelos treinos que me prepararam para esta aventura e a todos os meus amigos e família pelas palavras de incentivo que num momento de mais aflição foram o meu alento.
Os objetivos para 2015 já estão definidos, cada vez mais é o mote.
Boas corridas a todos.
Leia aqui a 1ª parte deste relato final.
E aqui as crónicas de preparação para esta prova.