O meu Ultra Trail du Mont-Blanc (UTMB) - Crónica III
Faltam menos de 2 semanas. No dia 28 de agosto de 2015, cerca de 2300 participantes, entre as quais muitos portugueses, irão dar o tiro de partida do UTMB.
Esperamos por relatos e histórias fantásticas de todos os que se aventuram neste prova épica e iremos seguir com atenção o desenrolar da prova e acompanhar os esforços de todos os nossos amigos.
Enquanto aguardamos podemos saborear a fantástica aventura do David Faustino e o seu UTMB de 2014. Podem reler aqui a crónica II e a crónica I.
A vontad de um dia estar presente e fazer parte desta comunidade aumenta.
Por: David Faustino
Meta à vista
O Sábado é passado no meio de paisagens de postal, continuando a alternância de subidas e descidas com o cansaço a ser cada vez mais um companheiro de viagem.
Durante a tarde, deixamos Italia e entramos na Suiça. Nada muda muito. Subidas, descidas e cada vez mais cansaço. O corpo pede descanso, mas sabemos que ainda falta muito.
É talvez a parte da prova que mais me custou. Estamos com mais de 24 h decorridas e ainda faltam cerca de 50 kms. Num ou noutro abastecimento vou pedindo informações sobre a minha mulher. Nem sempre consigo obter resultado, mas vai dando para acompanhar. As últimas informações permitem-me concluir que tem vindo num ritmo relativamente constante e previsível. Isso é bom, vamos lá regressar a França!
Cansado
A entrada na segunda noite traz-me sensações ambíguas. Se por um lado o corpo já não quer continuar, por outro a mente (e o Garmin) dizem: são dez da noite e já “só” faltam 35 kms. Está quase.
O quase é bastante relativo. A parte final do percurso é mais técnica e a progressão mais lenta. A velocidade de progressão já é sempre medida a dois dígitos o km. O percurso eterniza-se. Por outro lado, tendo toda a prova sido feita sem quedas e sem nenhuma dor localizada, agora sinto uma dor aguda no tornozelo direito que toca no sapato a cada passada. Progressivamente, ao longo da noite, a dor torna-se difícil de suportar. Com os bastões até poderia aliviar o apoio no pé, mas sobre bastões já está tudo dito. Aperto o sapato. Alargo os atacadores. Sento-me para repousar. Retiro palmilhas. Volto a apertar o sapato doutra maneira. Nada resulta e o tornozelo já está em tamanho XXL, assim como a dor que dele emana. A dupla Salomon XT Wings 3/tornozelo não se está a entender, para meu desespero.
As sensações de prova começam a ser claramente negativas, mas não vou ficar a 20 kms da meta. Faz-se luz! Retiro o Buff, que já não estava a usar, da mochila e coloco-o por baixo da palmilha do sapato, fazendo altura e evitando assim o contacto do sapato com o tornozelo. Já não dói (quase) nada!
Sentia que agora dificilmente algo me iria impedir de chegar ao fim, mas estava desgastado por tudo o que se tinha passado e, obviamente, pela distância.
Estamos a chegar ao final da noite, estou de rastos, e no abastecimento dizem que faltam menos de 11 Kms e que é sempre a descer.
Dificilmente algumas palavras poderiam ter mais impacto em mim: 11 kms, sempre a descer! Invade-me uma estranha sensação de euforia e sinto uma força que me surpreende. Resolvo desatar a correr monte abaixo. Primeiro com alguma cautela, já não corria há algumas horas. A sensação não passa e corro cada vez mais. Passo por pessoas que me ultrapassaram ao longo das minhas dificuldades e que ficam algo perplexas com este renascimento. Alguns inspiram-se e começam a correr também. Um espanhol acompanha-me e, puxando um pelo outro, entramos em Chamonix para os últimos dois quilómetros feitos a 5’30/Km.
Naquelas ruas, nos metros finais, sinto gosto em correr, sinto-me feliz por estar ali, doí-me 99% do corpo, mas tenho a cabeça 100% repleta de sensações positivas. Revejo flashes da prova: a chuva, os bastões, onde está a minha mulher, sentado naquela subida a tirar o sapato.
Passo a meta. Acabou.
Chegada!
O Rescaldo
Recupero o folgo, vejo o ecrã com a classificação e pergunto pelo dorsal da minha mulher. A previsão de chegada permite-me descansar um pouco até lá. Decido ir para o carro. Entretanto, lembro-me que o prémio de finisher é um colete e que me esqueci do levantar. Volto atrás. A viagem para o carro é infindável. Não há célula do meu corpo que não doa. Chego ao carro, coloco um alarme no telemóvel e instantaneamente adormeço.
Para o homem comum é apenas um colete made in Vietnam, mas é a peça de vestuário mais desejada do corredor de trail amador.
Acordo sobressaltado ao som do alarme, tento calçar-me (dói), troco alguma roupa (dói) e volto à meta (dói).
Pouco depois chega a minha mulher e aí terminou realmente o UTMB para mim, para nós.
Ainda fomos surpreendidos pela presença junto à meta da proprietária da casa onde ficámos em St Gervais, acompanhada dos filhos. Segui-nos ao longo da prova pela internet e quis estar à chegada para felicitar-nos. Parecia mais satisfeita do que nós próprios com o nosso desempenho. Fiquei sensibilizado e agradecido por alguém se dar ao trabalho de fazer isso, num Domingo de manhã, a pessoas que conheceu três dias antes e que, provavelmente, não voltará a ver. Pequenas coisas, mas que marcam…
O que reter desta aventura? Talvez que há coisas que não se contam nem se explicam, têm de ser sentidas. Tenho a sorte de ter comigo alguém que, por mérito próprio, também sentiu o UTMB e por isso não tenho necessidade de explicar como foi ou de justificar porque tinha de o fazer. Aos outros não vale a pena tentar explicar, porque provavelmente não o irão entender.
Por isso nunca o fiz… até hoje.