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Correr na Cidade

La Bouillonnante: 104km...que afinal tiveram que ser só 54km

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Por: Tiago Portugal


A minha 2.ª Ultra Maratona no estrangeiro:

                              

  • 00h00 de 25 de abril de 2015 em Bouillon (se preferirem Bulhão em português), Bélgica.
  • 104km que, por motivos pessoais, tive que encurtar para os 54km, mas já explico mais à frente.

 

Esta história começou em janeiro deste ano, altura em que em conjunto com o meu irmão Frederico nos inscrevemos(foi mais ele que nos inscreveu) para participarmos nos 104km do Trail de La Bouillonnante, uma prova com 4000D+ e que era o palco do campeonato belga de ultra-trail, uma espécie de MIUT à la Belga.

 

Era a primeira vez que eu e o meu irmão iríamos tentar alcançar os três dígitos, 100km de distância, cada vez se quer mais, e fazê-lo em conjunto tornava a prova ainda mais especial. Infelizmente, em meados de abril, soube que teria que estar em plenas condições físicas no fim do mês o que me pôs num dilema complicado. Se por um lado queria tentar concluir a prova, por outro poderia estar a prejudicar e a pôr em causa o meu futuro profissional e pessoal. Tive que decidir entre a glória presente e a perspetiva de um futuro mais risonho: optei pela segunda, afinal provas há muitas.

 

Foi então que, quarta-feira dia 22 de abril, parti para a Bélgica já sabendo que ia dar por concluída a minha prova no abastecimento dos 54km, o que já não é mau.

 

Aproveitei o dia de quinta e sexta-feira para passear por Bruxelas e descansar um pouco.Vim a saber tive muita sorte e apanhei dois dias atípicos em Bruxelas: sol e calor.

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Sexta-feira arrancámos às 19h30 para Bouillon, a cerca de 180km de Bruxelas, para irmos tranquilos. Definimos estratégias e tentámos atenuar a ansiedade natural antes de qualquer corrida, seja de 100 ou 10km. O Frederico me contou que treinar com desnível é uma tarefa difícil na Bélgica. A região onde decorreria a prova é uma das poucas onde se consegue ter desnível, mas montanhas nem vê-las. Seria tudo feito na floresta e com um perfil de prova tipo “serrote”, sempre a subir e a descer.  

 

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À meia-noite em ponto, os 276 participantes arrancaram ao som dos tambores do castelo de Bouillon para a escuridão da floresta. Durante cerca de duas horas ainda pensei que não fosse chover. Como estava enganado...

 

Optámos por fazer a prova juntos até ao primeiro abastecimento e arrancámos a bom ritmo. Cheguei ao 30km com 3h42 em 98.º posição. Utilizei o singular porque, cerca de 4km antes, o meu irmão acelerou um pouco o ritmo até ao abastecimento. A razão? Simples, ficámos os dois sem água e isotónico, completamente secos. Esta prova até à base de vida ao km 54 só tinha um abastecimento aos 27km. Não estou habituado a provas deste tipo em que temos que ir em semi-autosuficiência e a gestão da hidratação correu menos bem. Ao km 26 ficámos os dois sem nada para beber, mas olhámos para o relógio e pensámos que daí a 1km o problem estaria resolvido.

Chegados ao km 27 e nada de abastecimento. Km 28 e nada de abastecimento. A boca a secar e o stress a aumentar. Aqui o Frederico decidiu aumentar o ritmo, pelo que percebi, chateado por não ter trazido mais água. Km 29 e abastecimento nada, e no sítio onde estava não me parecia que o dito estaria ali ao virar da esquina. E eis que finalmente, ao km 30, vislumbrei o abastecimento. Para quem já ficou sem água, sabe que não é fácil e aumenta muito o nível de ansiedade.

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 Apesar de ter levado muita água, não chegou para as minhas necessidades.

Após reabastecer de água e isotónico, ingerir uns salgados e trocar de t-shirt, pois estava encharcado até ao osso, chovia sem parar há quase duas horas, chuva essa que persistiu quase continuamente durante todo o dia, recomecei a correr.

 

Nesta altura já tinha decidido em seguir sozinho, afinal ia ficar pelos 54km enquanto o objetivo do Frederico eram os 104km. Nem 100 metros depois do abastecimento deparei-me com uma subida, das mais ingremes que fiz até à data. Foram 20 minutos de puro sofrimento, comecei a sentir o coração a bater com mais força, parecia que o conseguia ouvir, passado uns minutos sentia a pulsação no cérebro - nunca me tinha acontecido. Chegado ao cume, parei para descansar durantes uns minutos e tentar baixar o ritmo cardíaco.

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Comecei a caminhar e segui caminho atrás de dois atletas, seguimos a 50 metros uns dos outros, em fila indiana durante uns bons 10km. A partir das 04h00 começou a cair um nevoeiro cerrado, não via mais do que 5 metros à minha frente. A minha própria respiração dificultava a visão pois criava uma névoa que ficava a pairar no ar. A solidão da noite, a escuridão, a chuva constante e o frio fizeram-me ficar desanimado e a sentir-me derrotado pelas condições que enfrentava. Até ao amanhecer corri e andei sozinho. Nas subidas pegava em paus que faziam às vezes dos bastões - bela ajuda me deram mas ainda não foi desta que me converti. Assim que consegui tirei o frontal, estava farto de andar com aquilo na cabeça e troquei o buff molhado que tinha por um seco. Passei por um participante holandês numa subida que estava praticamente a dormir em pé e mal andava, troquei umas palavras com ele, ofereci-lhe um gel com cafeína e segui caminho. 

 

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7h42m e 31 segundos depois de ter iniciado a prova cheguei finalmente ao 54km e à base de vida de Sugny. Aproveitei e troquei para uma roupa seca que tinha deixado no saco, mudei de sapatilhas e comi uma canja. Durante alguns  minutos ainda pensei em continuar. Via os atletas a seguirem caminho e a vontade de ir com eles era muita, mas tive que me conter, não podia arriscar. 

 

Resultado final: os objetivos foram cumpridos, cheguei a meio da prova, 54km, sem mazelas e a sentir-me bem e com força. A prova estava bem organizada mas os trilhos em Portugal são muito, mas muito mais bonitos. Os portugueses são muito mais animados a correr e conversam mais, e ainda bem. Não gosto de correr à chuva. Um pouco ainda vai, mas agora levar com quase 7 horas de chuva já é demais! Aproveitei para visitar o meu irmão e Bruxellas, e fiquei com boa impressão da cidade. 

 

Tenho hoje a certeza que fiz bem em parar naquela altura, provas existem muitas e por vezes temos que optar entre o que queremos fazer e o que precisamos de fazer

 

Boas corridas a todos.