A Lisboa que muito se teme mas muitos desconhecem...
Convidámos a Liliana Moreira, que é presença assídua nos nossos treinos, para escrever sobre o treino “Viagem ao Oriente Esquecido” que decorreu na passada terça-feira, dia 8 de julho, e que foi guiado pelo nosso amigo João Campos. Aqui fica o seu relato:
por Liliana Moreira:
Quando vi o evento "Viagem ao Oriente esquecido" do Correr na Cidade confesso que não me passou pela cabeça o que estava para vir...
Só quase na véspera é que me apercebi que este treino ia ser guiado pelo João Campos e, já conhecendo um pouco a peça, vi logo que não ia ser um treino "típico" de linhas retas junto ao rio... Não! Deste menino tem de se esperar sempre qualquer coisa de diferente e neste caso foi a escolha do percurso.
A realidade é que quem corre na rua em ambiente urbano tipicamente corre nas zonas que conhece, ou que têm caminhos específicos para o efeito, o que faz com que naturalmente encontre mais elementos da sua "espécie" mesmo quando está a correr sozinho... Assumimos então que essas são as zonas tradicionais da corrida de rua. No entanto, este treino levar-nos-ia a outro destino...
Antes de nos pormos ao caminho o João muito franco sobre o que iríamos encontrar ao longo deste treino e talvez por isso gravei na memória a sua indicação final "cabeça, estômago e pernas fortes." Não sei se esta dica foi em modo inibitório para os mais medricas ou não, mas a verdade certo é que criou-se um grupo muito bem composto de cerca de 30 pessoas em Sta. Apolónia... Ah valentes!
Dado o gongo de partida a nossa orientação era como se fossemos para o Parque das Nações, mas rapidamente verificamos que zonas nobres nem vê-las... não esperem que identifique em que ruelas sujas andei, que fábricas abandonadas conheci ou em que bairros sociais passei porque não foi essa a informação que retive! O que os meus sentidos assimilaram ao longo desta verdadeira viagem foi o peso da palavra "esquecido".
Entramos numa Lisboa à parte...de lixo, dejectos, entulho, desleixo, abandono e de má fama pela violência dos seus moradores. Pessoalmente não foi um cenário que me tivesse surpreendido muito pois cresci num bairro suburbano muito semelhante a algumas zonas por onde andamos, mas o que eu não tinha a noção era que a própria Lisboa tinha bairros em condições tão degradantes!
Foi interessante ver um grupo tão grande, fisicamente a concentrar-se quando entravamos em alguma zona que causava mais desconforto. Senti que em certas alturas corríamos de facto em "matilha" para nos preservarmos ao desconhecido.
E apesar de uma boa parte do percurso andarmos em caminhos isolados, em momento algum me senti em perigo. Mas é verdade que houveram partes desconfortáveis de single tracks ladeados por entulho e dejectos (de animais?!), de becos e escadarias forradas a fuligem de pequenos incêndios... Ah! E o mítico canavial de quase 1K que nos empestou de pequenos cardos e nos fez sonhar com carraças à noite!
Dito assim fica-se com a ideia que de o ambiente durante o treino foi de cortar a faca... Nada disso! A verdade é que imperou a boa disposição, a curiosidade e o espírito de entreajuda quando alguém (eu!) se atrasava mais, aliado ao facto de termos feito aquilo a que nos propusemos a fazer... Correr!
Mas no meio deste deserto de fealdade encontramos alguns oásis que, esses sim, me surpreenderam... porque isto de andar praticamente no meio do lixo e de repente reagrupar em parques relvados com pontos de água a funcionar ou em pracetas bairristas de vivendas familiares, foi um miminho que o João nos deu!
Mas luxo mesmo, foi voltar a ver crianças a brincar na rua em pequenos grupinhos sem a trela dos pais, provavelmente a porta de casa como eu fazia quando era pequenita…luxo, foi ouvir o sino da igreja a ressoar como se estivéssemos numa pequena aldeia no meio da grande cidade....luxo, foi ninguém com quem nos cruzamos nos ter negado um "boa tarde" com um sorriso surpreendido por nos ver ali, aves raras e coloridas, a correr nos seus bairros esquecidos.
Para além da corrida em si, foi uma experiência enriquecedora, um "abre olhos" que nos ajuda a desmistificar algumas zonas de Lisboa que estão tão mal conotadas... com certeza que ali também vive gente de bem e trabalhadora mas que só não tem a sorte, ou possibilidade, de viver num local melhor.
Acredito que são as pessoas que fazem os lugares e não os lugares que fazem as pessoas.
Mas vá lá, não sejam ingénuos... não quero com isto dizer que vão já esta noite, sozinhos, correr para estas zonas... isso é basicamente entrar na boca do lobo!
O que quero dizer é que se interessem por sair da vossa zona de conforto, e sem dúvida que o Correr na Cidade o fez com a ajuda mais que reconhecida e apreciada do João Campos com um treino que de tradicional teve muito pouco.
Duvido que alguém se vá esquecer!