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Correr na Cidade

Ultra Trail Sintra - Monte da Lua 50k+: da alegria à dor

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Por Tiago Portugal:

 

Talvez tenham sido alguns dos quilómetros mais penosos que fiz. Nos últimos 5km nem força tinha para andar quanto mais correr, só de pensar nisso doía-me o corpo todo. A solução que encontrei foi correr 100m andar outros 200m e assim sucessivamente até finalmente chegar à meta, que diga-se cruzei a andar.

 

Este pequeno relato retrata a parte final do que passei no sábado dia 18 no Ultra Trail de Sintra-Monte da Lua, uma prova que teve de tudo e na qual estive por cima a maior parte do tempo mas que acabou por me levar de vencido.

 

Não me vou alongar, muito, sobre as paisagens nem sobre os pormenores do percurso, já existem alguns textos que retratam com exatidão esses assuntos. Decidi que neste caso faz mais sentido analisar o que fiz de correto e errado e alguns detalhes da prova, tentando com isso trazer alguma mais-valia ao meu texto que não a simples leitura das minhas peripécias.

 

De acordo com o meu plano de treinos tinha previsto para o fim-de-semana um treino longo de cerca de 5horas. Aproveitei o facto de a Horizontes gentilmente ceder alguns dorsais ao Correr na Cidade e em cima da hora decidi juntar o útil ao agravável e ir aos 50k+. Era a maneira de testar a forma, afinal é uma competição e damos sempre mais um bocado de nós, pelo menos eu.

 

Ao contrário de outras provas, não perdi muito tempo a pensar na distância que ia fazer nem a planear o que iria levar. Claramente foi um erro. Por mais provas que já se tenham feitos, devemos respeitar a distancia, iam ser mais de 50 quilómetros com um desnível de 2200 D+.

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Fui com demasiada confiança e muito descontraído.

 

Dorsal levantado e já equipado dirigi-me para a praia onde se encontrava o pórtico de saída. Encontrei muitas caras conhecidas e aproveitei para conversar com alguns deles. Por ser perto de Lisboa esta é uma prova que chama muita gente, quer à distância mais curta ou à mais longa. Às 08:15 o Paulo Garcia, Diretor da Horizontes, fez um briefing resumido da prova para os mais de 200 ultras que se encontravam no areal.

 

Fui sem estratégia nenhuma para esta prova, o objetivo era ir correndo a bom ritmo e ver até onde aguentava. No meio de dois dedos de conversa começo a ouvir a contagem 4,3,2,1 e lá arrancámos todos.

 

Decidi começar rápido para não ficar parado na parte inicial. Por norma costumo começar sempre um pouco mais rápido do que pretendo para não ficar parado ao início, nos primeiros kms sou ultrapassado por alguns atletas mas rapidamente encontro o meu lugar e sigo ao meu ritmo sem preocupações.

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Sempre bem-dispostos, nem que seja ao início

 

Ao fim de 500-600 metros primeira contrariedade, já estávamos perdidos. Altura de reagrupar, ver onde andavam as fitas, um problema de acabar a prova no mesmo sítio onde se começa, e recomeçar tudo de novo. Com toda esta confusão dei por mim nos primeiros lugares do pelotão, fui naturalmente sendo ultrapassado por alguns corredores mais rápidos e pelas minhas contas de cabeça estavam cerca de 20 atletas à minha frente. Os kms iam sendo feitos a bom ritmo mas com algumas dificuldades no percurso.  Em alguns locais não havia fitas e a única marcação eram umas bolas laranjas pintadas no chão ou noutros locais, já começa a ser norma arrancarem fitas e as bolas iam dando indicações.

 

Nota: perdi-me algumas vezes nesta prova, mas a grande maioria foi por culpa própria.

Ir a correr e estar constantemente alerta para ver o percurso é desgastante e temos que estar sempre concentrados. Nesse sentido é mais fácil ir acompanhado ou a correr atrás de alguém. Em algumas situações via as setas no chão a indicar a direção mas o cérebro não processava a informação e seguia outro caminho. Em determinada altura percorri o trilho das pontes quase todo a subir até que um senhor que por lá andava me disse que andava mal e devia ter virado logo ao início à esquerda. Voltei para trás e reparei em várias fitas e setas a indicar o caminho certo, seguramente que a falta de atenção me custou mais alguns minutos.

 

Os primeiros 8km até ao 1.º abastecimento foram feitos em bom ritmo. Reabasteci de água e segui caminho. Nesta altura apesar de não estar sol estava um tempo muito abafado com uma humidade extrema. Rapidamente fiquei com a t’shirt alagada em suor e tive necessidade de beber mais líquidos do que o normal.

 

Até ao 2.º abastecimento, em Sintra, sensivelmente ao km 19, continuei a correr a bom ritmo, sempre acompanhado do Marcelo, nesta fase a estratégia era andar depressa até rebentar, depois logo se via. Abasteci o camelback de água e 1 dos bidões de isotónico e segui caminho. Já começava a ter o estômago cheio de água e a vontade de comer era muito pouca, ou nenhuma. Tinha tomado só um gele sem fome só conseguir comer meia banana cheia de sal grosso no abastecimento.

Não tendo estudado o perfil da prova não sabia a localização dos abastecimentos, nem a distância entre eles,mais um  erro que pode custar uma prova.

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Apesar de a Serra de Sintra ser o meu recreio de treinos esta primeira parte do percurso era terreno não explorado e não sendo nada de extraordinário achei o percurso interessante e alguns destes lugares merecem uma nova oportunidade.

 

Após o 2.º abastecimento temos uma ligeira subida e entramos na Quinta da Regaleira, para mim o ponto alto da prova. A última vez que visitei a Regaleira foi já há largos anos e não me recordava de nada mas fiquei com água na boca e certamente irei fazer uma visita mais demorada, vale mesmo a pena. Todo o percurso dentro da Quinta foi espetacular especialmente a descida do Poço Iniciático. Fomos trocando sorrisos com os muitos turistas que passeavam em Sintra e seguimos caminho pelo Parque das Merendas até ao Castelo dos Mouros.

 

Aqui deu-se o primeiro grande impacto da prova e senti algumas dificuldades.  A muito custo comi uma barra. Devido à humidade brutal estava literalmente ensopado e aproveitei duas WC para molhar a cabeça e o buff, sabe-me sempre bem.

 

Nesta altura da prova já estava em terreno conhecido, o que dá mais confiança. Fiz o trilho dos morangos a descer até chegar ao próximo abastecimento, só de líquidos. Enchi novamento o camelback e o bidão e segui caminho. De acordo com as indicações que tinha seriam cerca de 7km até ao próximo abastecimento e segui com confiança, afinal conhecia bem estes trilhos. Lembrete para eventos futuros: ver e estudar o perfil da prova e ver onde são os abastecimentos. Afinal os 7km seriam 12km, e que diferença fez.

 

Foram 12km muito penosos, principalmente a partir do momento em que deixei de ter água, perdi o meu softlask com o pouco de isotónico que tinha e tive que voltar para o ir buscar, valeu no meio disto tudo a entreajuda entre colegas e as palavras de ânimo, agradeço ao Nuno Lopes que em dois momentos partilhou a sua água comigo e a dois senhores que na subida do monge me deram uma garrafa de água, ajuda divina, carreguei-a com carrinho o resto da prova.

 

12km de desce e,principalmente,sobe muito duros, muitos companheiros ficaram como eu sem água sensivelmente ao quilómetro 35-36. Como em quase tudo na vida quando ficamos sem algo é quando lhe damos mais valor e este caso não foi exceção. A sede apertava e não tinha como a satisfazer. Não sei se já vos aconteceu mas ficar sem água a meio de uma prova ou treino é uma machadada dura a nível físico e psicológico. O ritmo cardíaco aumentou muito e comecei a ficar cada vez mais cansado. Nunca Sintra me custou tanto. Agarrei-me com força à minha nova melhor amiga, a garrafa de água que me deram, my precious e fui bebendo devagar, por vezes só molhando os lábios.   Finalmente comecei a vislumbrar a subida da peninha.

 

Uma nota: Por esta altura da prova já seguia com os mesmos companheiros há já alguns kms e por vezes basta um olhar ou uma palavra para saber o que cada um de nós está a passar, e nesta altura estava a ser difícil para todos. Mas ninguém desistiu e seguimos caminho em silêncio, cada um lutando contra si próprio.

 

Parei para reabastecer na fonte que existe na subida, fiquei alguns minutos sentados a refrescar e a beber, aliás bebi tanto que comecei a sentir-me mal disposto e com vontade de vomitar.

 

O abastecimento estava a menos de 1km de distância e enquanto me dirigia até lá fui preparando uma bebida com eletrólitos e aproveitei para tomar um gel, com a barriga cheia de água não conseguia pensar sequer em comer.

Esta última secção foi o início do fim, passei da alegria inicial que durou até ao km 35 e nos quais me senti sempre bem para uma agonia terrível nos últimos kms.

Descemos o trilho das viúvas, espectacular, até chegar aos estradões que nos levaram à Azoia e as arribas.

 

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Já me disseram que as arribas são uma das imagens de marca desta prova. Gostei muito de percorrer uma. Duas já começou a custar, à terceira já não podia com aquilo e quando me apercebi que via o fim comecei a insultar tudo e todos. Para a próxima basta por 1 ou 2 arribas para ficarmos satisfeitos, o que é em excesso cansa.

Resumindo: foi duro e tirando a vista da 1ª arriba não guardo boa recordação de mais nenhuma.

 

Ao chegar ao cabo da roca estava a decorrer uma operação de salvamento, não era para nenhum corredor felizmente.

Chegamos ao abastecimento, onde se encontrava o António Pedro Santos, sempre bem-disposto e pronto a ajudar e o Paulo Garcia da Horizontes. Troquei 2 dedos de conversa e segui caminho, se parasse ali já não me conseguiria levantar.

 

Ainda segui mais ou menos bem até chegar a uma nova arriba e aí perdi todas as forças. Ainda encontrei um participante da distância mais curta que me disse que ia em 29.º lugar, acenei e olhei para ele. Devia estar com um aspeto completamente arrasado pelo olhar que me deram. Nem isso me animou.

Os quilometros seguintes foram de verdadeiro esforço e sacrifício. Gosto de correr e é uma paixão mas a partir de determinada altura já não queria mais e por mim chegava. 

 

Olhei para o relógio, vi os km e as horas, calculei que já não conseguiria baixar das 08h00, um dos objetivos que coloquei a meio da prova, vou variando consoante a prova corre, ter pequenos objetivos alcançáveis ajuda-me a superar estes momentos, pelas minhas contas não faltava muito para acabar. 

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WTF!!! De repente dou de caras com uma subida toda em areia. Mas o que é isto? Percebo o conceito mas acho que era escusado ao fim de 53km termos que fazer aquela subida. Passaram por mim mais uns 3 atletas que bem me incentivaram, mas já não conseguia mais. A forma ainda não é a ideal. A muito custo lá ultrapassei este obstáculo e rapidamente dei por mim a correr na praia das maças. Falei com algumas pessoas que estavam com curiosidade sobre o que se estava a passar com estes malucos que passavam a correr na praia. 

 

Finalmente avistei a meta, ainda me perdi no fim, uma fita a bloquear o acesso à praia enganou-me e fui em sentido oposto. Rapidamente alguém foi retirar a fita para evitar outras situações como a minha. 

 

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Resumo: 55,5km no meu relógio, também me perdi algumas vezes, com o tempo de 8h12m16s com o 38.º lugar.

 

A prova é interessante e passa por lugares fantásticos em sintra. Penso que podiámos ter feito mais km's na serra e menos nas arribas, o que não faltam são trilhos lindos em Sintra.

 

A nível da marcação, tirando o início e o fim, que são no mesmo sítio, muito pouco a dizer, foram eficientes e se me perdi mais vezes foi por culpa própria.

 

É uma prova dura e não será a melhor prova para se estrearem em ultras, mas seguramente que lá estarei para o ano.