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Correr na Cidade

O meu Ultra Trail du Mont-Blanc (UTMB) - Crónica I

O Ultra Trail du Mont-Blanc é uma das mecas para os praticantes e apaixonados por trail, sendo para muitos "a prova",  o grande objetivo a concretizar. Sonhamos, planeiamos e treinamos para um dia alinhar em Chamonix de forma a percorrer os 168km, as famosas 100 milhas, que separam o início e o fim desta grande aventura.

 

Com a data da prova a aproximar-se, o Correr na Cidade têm o privilégio de poder partilhar quatro crónicas do David Faustino, um dos corredores nacionais com mais provas feitas e que conta com vários anos de experiência, que retratam todas as etapas, desde a preparação para a prova até à passagem da meta. O David partilha connosco a sua história do UTMB de 2014 que desde já agradecemos.

 

Serão sem dúvida uma leitura obrigatória para todos os que este anos irão marcar presença e para quem sonha um dia realizar esta prova.

 

Por: David Faustino

 

O meu UTMB

O caminho para a linha de partida (I)

 

A sigla UTMB é das que mais faz sonhar o corredor de trail amador. Só o nome da prova que representa, em si mesmo, já impõe respeito: Ultra Trail du Mont Blanc.

 

Do ponto de vista técnico, o UTMB é uma prova de carácter competitivo, com um percurso circular de 168Kms a partir de Chamonix (França) e que passa por três países à volta da montanha mais alta da Europa ocidental, tendo cerca de 9.800 m de acumulado positivo. A prova tem um tempo limite de 46 horas, mais do dobro do tempo tipicamente realizado pelo primeiro (20 horas e alguns minutos) e quem chegar a meio do pelotão demorará cerca de 41 horas. Pelo percurso existem 12 barreiras horárias à saída de alguns dos 17 abastecimentos.

 

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 O percurso do UTMB

 

Assim, foi com alguma naturalidade que, após alguns anos de corrida em estrada e algumas experiências numa modalidade que se estava a iniciar em Portugal, o trail, decidi também eu tentar obter o meu lugar nessa aventura.

 

E digo tentar obter, porque aqui entram vários fatores: o timing da inscrição, a experiência do corredor (traduzida em pontos obtidos em provas reconhecidas pela organização) e a sorte de cada um. Assim, creio que a minha primeira intenção em participar ocorreu durante a primavera de 2012, mas depressa me apercebi que as inscrições tinam fechado em Dezembro, assumindo um erro de principiante… Dezembro de 2012, no prazo correto e com os pontos necessários para a pré-inscrição (na altura eram 7 pontos obtidos num máximo de 3 provas, nos 2 anos anteriores à inscrição) eu e a minha mulher formamos uma equipa para entrar no sorteio (essa é uma das características interessantes da prova, podemos formar equipas para as quais o resultado do sorteio será sempre igual para todos os membros). Situação ideal para mim, que me permite garantir uma ida à prova em família! Mas no sorteio para a prova de 2013 a sorte foi madrasta e recebemos um email convidando-nos a participar na TDS (119 Kms, 7250 m D+) ou a aguardar mais um ano, adquirindo um fator que multiplicaria por dois as nossas probabilidades de aceder ao UTMB. Um sonho, é um sonho, e 119 Kms não são 100 milhas, por isso a opção pelo sorteio para 2014 foi óbvia!

 

Dezembro de 2013, com os pontos em dia, fator 2 para o sorteio e com a garantia de que iria ao UTMB em 2014 ou 2015 (porque à terceira é de vez, isso é, após dois sorteios desfavoráveis a organização garante o acesso na terceira inscrição, caso os candidatos mantenham os pontos necessários), fiz novamente o pré-registo para o sorteio em equipa com a minha mulher.

 

No dia 15 de Janeiro chega o tão esperado email:

 

“Bonjour David FAUSTINO, Vous êtes pré-inscrit pour la course UTMB®.  Le tirage au sort a été effectué et nous avons le plaisir de confirmer votre inscription à la course UTMB® ! Vous devez maintenant finaliser votre inscription, à partir du 15/01/2014 et avant le 27/01/2014.”

Tenho de reconhecer que este processo tem um mérito: quando conseguimos o nosso lugar na prova, ficamos satisfeitos em pagar os 207€ (valor de 2014) da inscrição! Sim, porque no dia em que conseguimos um dos 2.300 dorsais sorteados (existem depois cerca de 200 adicionais

 

para elites, convidados, etc) entre os cerca de 10.000 candidatos ficamos com a impressão que a parte mais difícil do UTMB já está feita. Mas não é bem assim…

 

O caminho para a linha de partida (II)

 

Recuperado da emoção do sorteio, após as felicitações dos amigos que acompanharam o processo, trocadas algumas mensagens com os conhecidos que também lá estarão, vem a primeira tomada de consciência: não sei se alguma vez lá voltarei, por isso quero fazer uma prova decente!

 

Decente, para mim, significa sem sofrimento, com capacidade de disfrutar da prova e sentido que estou num nível físico adequado para terminar dentro do tempo limite. Assim, para servir de formação inicial sobre o que é o UTMB, vivido na primeira pessoa, resolvi começar por ler os relatos de quem por lá já tinha passado, destacando o do Carlos Fonseca e o do Paulo Pires. São abordagens e experiências diferentes, ambas excelentemente narradas, mas com finais distintos. O Carlos foi barrado em Courmayeur com um pouco menos de 80 Kms de prova e por chegar 7 minutos depois do tempo limite. O Paulo fez uma prova regular e bem planeada, com pouco mais de 39 horas, ou seja com margem para imprevistos.

 

Foram leituras esclarecedoras que me ensinaram duas coisas: a prova é exigente e não perdoa grandes erros ou distrações, no entanto está ao alcance de alguém com alguma experiência e que se prepare corretamente.

 

Munido destes princípios, comecei a planear o meu ano de 2014 de forma a chegar em condições àquele que seria para mim o evento do ano, não deixando de planear esta preparação de forma a manter o mais importante: o gosto de correr.

 

A partir de Janeiro o grosso da minha preparação foi feito com provas de média/longa distância, tendo efetuado 14 Ultras, das quais três com 3 dígitos: 101 Peregrinos, Bandoleros (155Kms) e o OMD (160 Kms). Reconheço que não sendo um método de treino muito convencional, dada a elevada carga derivada da distância, o facto de encarrar estas provas sempre com bastante tranquilidade e com um ritmo moderado, permite minimizar o desgaste provocado pelas mesmas. Além disso, estes Kms dão experiência e confiança, sabemos que conseguiremos lidar com aquilo que iremos encontrar na prova alvo. A participação nestas provas decorreu sem percalços ou, melhor dizendo, sem as tão temidas lesões que num instante deitam tudo a perder.

 

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 Em Andorra, em preparação para o UTMB

 

Houve apenas uma prova que não correu exatamente como previsto, a Mitic, uma prova de 112 Kms realizada em Andorra em meados de Julho. O objetivo era realizar um último grande teste, cerca de seis semanas antes do UTMB. Mas na realidade, apenas reforcei a minha ideia sobre a alta montanha: não perdoa. Por motivos vários, terminei a minha prova aos 44 Kms e com 13h40 mins de prova! Do mal o menos, a organização atribuía uma classificação a quem terminava neste ponto e era atribuído um diploma de conclusão duma maratona de montanha. E que montanha! Técnica, difícil, com 3.500 D+ nesses 44 K e diria mesmo perigosa nalguns pontos. O encontro com a minha mulher durante a prova (normalmente corremos separados) que estava a passar pelas mesmas dificuldades também facilitou a tomada de decisão. Retirámos as lições necessárias, porque o que corre bem melhora a nossa preparação e autoconfiança, mas nos restantes casos o importante é aprender e saber evitar os mesmos erros.

 

Adiante. Feita a restante preparação, faltava apenas fazer-se à estrada e rumar a Chamonix!

 

O caminho para a linha de partida (III)

 

Cheguei com a minha mulher a Chamonix na terça-feira anterior à prova de forma a ter algum tempo para descansar, já que a mesma se iniciava na sexta à tarde. Na prática não ficámos exatamente em Chamonix, optámos por St Gervais, que estando próximo (20 kms) nos dava um pouco mais de distanciamento relativamente ao frenesim que se vive na cidade na última semana de Agosto. Alem disso, era também ponto de passagem e local de abastecimento da prova e permitiria ter uma pequena noção do que iriamos encontrar no percurso.

 

Fizemos dois treinos ligeiros, um na terça e outro na quarta. Para que a quinta fosse um dia de descanso total, fomos levantar os dorsais ao final do dia de quarta, encontrando uma cidade que, nesses dias, vive e respira trail. Em Chamonix, tudo aponta para as várias provas em curso ou que irão decorrer, sentindo-se uma atmosfera mais próxima das grandes maratonas internacionais do que daquilo a que estou habituado na montanha. Não sei se gosto, mas que é imponente, isso é.

 

Voltando aos dorsais, o levantamento tem de ser feito acompanhado com a mochila em condições de corrida, ou seja com uma lista tamanho A4 de equipamento obrigatório, que vai desde gorro, luvas, calças e casaco impermeáveis (com especificações bem definidas de impermeabilidade e respirabilidade), frontais, recipientes, manta térmica, etc, etc e etc… Aqui fica a minha preferência pela lógica americana da participação nestes eventos: cada um é responsável por si, e leva o que entender como necessário. A organização é responsável por cumprir com o que oferece no programa da prova e nada mais. Na inscrição para essas provas assinamos documentos que garantem que estamos informados do facto e pronto. Mas como, seguindo a minha opinião, não me seria permitido participar nesta prova, vamos lá respeitar as regras e ir carregadinhos e ordeiramente para a fila. Após um controlo aleatório de algum desse material obrigatório, é entregue o tão desejado dorsal.

 

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 A lista do material obrigatório (são controlados artigos aleatoriamente no levantamento do dorsal e o atleta deverá apresentar os que têm uma seta)

 

Falta agora apenas regressar à base para os últimos preparativos que incluíam escolha de roupa adequada às condições climatéricas (que se apresentavam variáveis), preparação do saco para muda de roupa em Courmayeur e descansar o mais possível antes de, provavelmente, duas diretas consecutivas.

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 Em Chamonix, após o levantamento do dorsal

 

Sexta-feira 29 de Agosto, o dia D. Ao final da manhã, ida para Chamonix para tentar um local não muito distante da partida para estacionar, o que não é tarefa fácil quando um meio relativamente pequeno está repleto de corredores, acompanhantes, meios de comunicação e organização. Após a entrega do saco para Courmayeur, fomos à pasta-party oferecida pela organização onde encontrámos alguns elementos da comitiva portuguesa com destaque para o Carlos Sá, sempre simpático e acessível para todos. Nesta fase do dia, as pulsações já estavam 50% acima do normal.

 

Última ida ao carro para vestir o equipamento definitivo e trazer a mochila. Afinal o carro não ficou assim tão perto e ainda se gastam cerca de 20 mins para cada lado… Resultado, estamos a ficar em cima da hora e já em passo acelerado para a linha de partida. Feito o aquecimento forçado, chegámos um pouco após as 17h00, para uma partida prevista para as 17h30. Não havia mais remédio do que ficar no fim do enorme pelotão e sem direito sequer a visualizar o arco de partida. Não iria ser isso que iria estragar o momento. Por outro lado as enormes nuvens com tonalidades que variavam entre o preto escuro e negro carregado, essas sim já me pareciam poder fazê-lo. Cerca das 17h25 começa a chover copiosamente e, num momento com uma sincronização digna de uma coreografia de cerimónia de abertura dos jogos olímpicos, cerca de 2500 pessoas retiram apressadamente impermeáveis das mochilas. 17h31, apercebo-me do início de movimento da massa humana e ainda estou a apertar a mochila. Despeço-me da minha mulher e cada um inicia a sua aventura, que nesta fase ainda consistia em avançar sem pisar e ser pisado, movendo-se ao ritmo da massa humana compacta que nos rodeava. Ás 17h38 passo pela linha de partida ao som de Vangelis.

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 A partida chuvosa do UTMB 2014